domingo, 3 de fevereiro de 2013

Mamiferizar o parto

Uma vez uma parteira, vendo um parto domiciliar que não evoluía, chamou Odent e pediu-lhe que ele fizesse a sua parte. Então ele fez. Chamou o marido para fora do quarto, levou-o para a cozinha, onde ficaram a tomar chá. Para Michel Odent, fazer a parte do médico é ir para um lugar à parte, acalmar o marido e deixar as coisas com as mulheres. Cumprindo a etimologia do nome Obstetra, palavra que deriva de obstar – estar ao lado.

Michel Odent, parteiro francês, residente em Londres, e que assiste partos desde 1953, em maternidades, hospitais e domicílios, fez uma palestra de abertura no Seminário BH Pelo Parto Normal, na Associação Médica de Minas Gerais, em 2008. Este é um excerto dessa palestra.


"A ocitocina é uma hormona chave no processo de nascimento, mas a ocitocina é especial quando consideramos a condição para a sua libertação, porque depende de fatores ambientais para a sua libertação. A ocitocina é uma hormona tímida.

Todos os mamíferos têm uma estratégia de não serem observados no momento do parto. Se prejudicar o processo de nascimento de um mamífero não-humano, o efeito é que a mãe não cuida do recém-nascido. No ser humano é mais complexo, pois tudo é diluído pelo meio cultural.

Parece que houve uma fase na história da humanidade em que as mulheres se separavam do grupo na hora do parto e isolavam-se na Natureza. Parece, entretanto, que em todas as sociedades em que as mulheres se separavam do grupo para dar à luz, elas não ficavam muito longe das suas mães ou de uma mulher com experiência que as protegiam. Essa, provavelmente, é a origem da parteira e a ocitocina aceita aparecer na sua presença.

Segundo Odent, depois dessas épocas primitivas, ocorreu uma socialização maior do parto e a parteira passou a fazer parte do cenário do parto que transmitia crenças e rituais, funcionando como uma guia e dizendo à mulher o que precisava ser feito. Depois, as mulheres passaram a ter partos domiciliares.

Em meados do século XX surgiu algo novo: teorias consideradas científicas dizem que as mulheres precisam ser recondicionadas e ensinadas como dar à luz, como respirar, como fazer força, o que levou à introdução de pessoas adicionais à cena do nascimento.

Mas houve um novo passo na metade do século XX, que foi a masculinização da cena do parto. Além de cada vez mais médicos se especializarem em obstetrícia, subitamente, na década de 70, havia uma nova doutrina do pai participando no processo de parto. Também foi o momento em que as máquinas eletrónicas e a alta tecncologia foram introduzidas na cena do parto. Ou seja, o ambiente do nascimento se tornou altamente masculino, o que foi um outro passo nesse processo de socialização do parto.

Recentemente, há ainda uma nova fase: o parto dito natural porque a mulher está de novo em casa, na banheira ou está de cócoras, mas rodeada de 3 ou 4 pessoas, o que faz com que o ambiente não seja assim tão natural quanto isso, porque esqueceram o que era importante: que a ocitocina é uma hormona tímida, não só no parto mas também imediatamente após o nascimento do bebé.

1 - A ocitocina é a hormona do amor e é importante perceber que é neste momento que a mãe tem a capacidade de libertar os níveis mais altos de ocitocina, mais do que durante o parto, mais do que durante o orgasmo...Este pico de ocitocina é necessário para que haja um pós-parto sem sangramento.

Hoje, este pico é praticamente impossível de acontecer porque as condições para ele possa ocorrer são o contato pele-a-pele com o bebé, que ambos se possam olhar nos seus olhos, sentir os seus cheiros, sem qualquer distração. Da mesma forma, o bebé procura quase imediatamente após o parto o colostro, mas para achá-lo precisa estar nos braços da mãe e não ser separado dela.

2 - Quando nós, os mamíferos, libertamos adrenalina, não conseguimos libertar ocitocina. A adrenalina é a hormona da emergência, quando os mamíferos estão assustados, com frio ou com medo. Ou seja, no parto a mulher precisa sentir-se segura, confortável, sem se sentir observada; senão liberta adrenalina e não consegue libertar ocitocina. E o trabalho de parto atrasa-se ou chega mesmo a parar.

3 - Os seres humanos têm mais propensão para partos difíceis, em comparação com outros mamíferos e outros primatas. Uma das razões da dificuldade humana no período do trabalho de parto advém do nosso grande neo-córtex, porque durante o processo de parto ou de uma experiência sexual, as inibições vêm daqui.

Se olharmos para uma mulher em trabalho de parto do ponto de vista fisiológico, nós vamos ver que a parte primitiva do cérebro, uma estrutura arcaica chamada hipotálamo é a mais ativa durante esta fase. O fluxo de hormonas que a mulher tem que libertar para o trabalho de parto vem desta parte profunda e primitiva do cérebro. Ao mesmo tempo, vamos conseguir visualizar as inibições vindas do neo-córtex. Mas a natureza achou uma solução para superar esta deficiência: durante o parto, o neo-córtex tem de parar de funcionar. O nascimento é um processo primitivo e durante este processo o neo-córtex deve estar desligado.

Quando a mulher está em trabalho de parto sozinha, ela desconecta-se do nosso mundo e esquece o que está a acontecer à sua volta. O seu comportamento pode, inclusivé, ser considerado inaceitável para uma mulher “civilizada”: ela grita, é pouco polida, assume diferentes posições. Ela fica noutro planeta. Isso significa que o neo-córtex reduziu a sua atividade, o que é essencial para a fisiologia do parto.

Uma mulher em trabalho de parto precisa, em primeiro lugar, de ser protegida contra qualquer estímulo do neo-córtex. Na prática, isso significa que temos que nos lembrar quais são os estimulantes do neo-córtex para evitá-los.

Um destes estimulantes é a linguagem, que é processada no neo-córtex. Se utilizarmos a perspectiva fisiológica, vamos reconhecer que é preciso cautela para usar a linguagem durante o trabalho de parto e vamos redescobrir o silêncio e a importância da privacidade.

O neo-córtex também é estimulado pela luz e é muito sensível ao estímulo visual em geral. É interessante observar como uma mulher em trabalho de parto quando não é guiada, geralmente encontra por conta própria uma posição tal, na qual ela elimina os estímulos visuais para não ver nada e poder esquecer o resto do mundo.

4 - Para podermos redescobrir e atender às necessidades da mulher em trabalho de parto e do recém-nascido devemos aprender a eliminar tudo o que é especificamente humano e todas as crenças e rituais que interferem com o processo de nascimento.

Ao mesmo tempo, temos que redescobrir, atender e satisfazer as necessidades universais que todos os mamíferos em trabalho de parto têm, que é sentir-se seguro – se existe um predador por perto, a fémea liberta adrenalina para ter energia para lutar ou fugir e vai adiar o parto até se sentir segura novamente – e ter privacidade – todas as fémeas de mamíferos têm estratégias para não se sentirem observadas quando dão à luz.

No movimento do parto natural, uma nova teoria surgiu há um tempo atrás, uma ideia de que seria possível, imediatamente após o parto, induzir uma ligação entre o pai e o recém-nascido. Isso é irrealista. A razão pela qual este é um período crítico para a mãe e o bebé está no equilíbrio hormonal especial que nunca mais vai acontecer. E esse período crítico não pode ser o mesmo para o pai. O efeito foi de introduzir outra pessoa que distrai a mãe, no momento exato que ela deve libertar um alto pico de ocitocina...

No contexto científico atual, pode dizer-se que a mulher foi programada para libertar um cocktail de hormonas do amor quando está em trabalho de parto. Mas hoje em dia, a maioria das mulheres têm os seus bebés sem depender da libertação natural dessas hormonas. Muitas porque fazem cesariana e outras, mesmo dando à luz por parto vaginal, por não poderem libertar facilmente as hormonas devido às condições ambientais inapropriadas, precisam de medicamentos que as substituem: é-lhes administrada ocitocina sintética no soro, precisam de eperidural para substituir as endorfinas, precisam de medicamentos para eliminar a placenta. Toda uma série de procedimentos que bloqueiam a libertação dos hormonas naturais.

Estamos numa altura em que o número de mulheres que dão à luz e que eliminam os hormonas naturais do amor tende para zero. Isto é uma situação sem precedentes. Os seres humanos são tão inteligentes e tão espertos, devido aos seus neo-córtex, que conseguiram inutilizar as hormonas do amor. Precisamos questionar-nos sobre isto em termos da nossa civilização.

O que é que vai acontecer daqui a três ou quatro gerações se continuarmos nesta direção? Se fizermos a pergunta dessa forma e percebendo que precisamos redescobrir as necessidades básicas da mulher em trabalho de parto e do bebé recém-nascido e atender às regras básicas e simples, podemos dizer que a prioridade não é humanizar o parto, mas sim, mamiferizar o parto."

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